Tudo é necessário, até desenhar o choque cultural

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O choque cultural. O útil e necessário que sempre terá o seu lugar para todo e qualquer um que esteja em contacto com outra cultura, principalmente se uma é tão discrepante da outra. Chegou o meu tempo. Sento-me e contemplo este doce-amargo tempo, prestes a fazer a segunda viagem para o Quénia (uma vez mais, por causa do visto de residência que mostra a sua resistência em dar descanso).

A comunidade de LMC em Adis Abeba – David, Pedro e eu.

As nuances de cor-de-rosa que se apresentavam no céu de Adis Abeba são agora também tocadas pelo contrastante e frio cinza. Não digo que o tempo da paixão acabou. Haverá sempre coisas bonitas aqui a descobrir. Porém, este é também um tempo necessário para ver a realidade tal qual como é, ainda que seja uma apreciação mediada pelo meu olhar. É este o choque cultural que me tem habitado, desenhado pelo que vou sentindo.

Desenhado pela diferença da língua (amárico e inglês), que muitas vezes me faz pensar que o falar noutra língua nos faz sentir coisas diferentes ou de uma forma diferente. E é uma coisa sobre a qual vale a pena pensar – “como se sente noutra língua?”. Desenha-o também o sentir que sou mesmo diferente do povo etíope e que essa diferença (infelizmente) tem tantas vezes um sentido depreciativo, ainda que teime em recusar essa ideia por querer tomar e fazer parte com eles. Entre vozes e olhares que hoje me fazem caminhar pelas ruas sem direito a olhar muito para os lados, não vá surgir o típico “Farengi (estrangeiro)!” vindo de alguém que apenas quer provocar; entre a tendência para venderem tudo mais caro a partir do momento em que vêem o branco tingindo a pele; entre este ver e sentir a tamanha pobreza de muitos e sentir esta incapacidade de poder fazer o que quer que seja (até porque, muitas vezes, o dar dinheiro não ajudará… pelo contrário, não romperá o ciclo da necessidade de pedir na rua). Também o sentir que os meus olhos muitas vezes já recusam ver a pobreza (porque dói muito vê-la), tornando-se tantas vezes impermeáveis ao sofrimento daquela vida que se encontra ali no chão. É também a situação político-social que hoje se vive aqui parte deste desenho. Curiosamente, foi notícia em Portugal: em meados de Junho o líder do governo da região de Amhara (uma das 9 regiões da Etiópia) e o chefe do Estado Maior do Exército foram assassinados, assim como outras importantes figuras. Desde então, o controlo aqui aumentou: a internet é muito limitada para que através dela não haja fluxo de informação, há mais polícia nas ruas a controlar autocarros e táxis, etc. talvez possa dizer que não sinto por isso uma insegurança aumentada. No entanto, inesperadamente, surgem notícias de vidas que partem vítimas de conflitos políticos, de pessoas que querem gerar a desordem e ter poder e supremacia num país onde residem grandes divisões entre regiões e grupos étnicos. E por isto peço a vossa oração para que todo este confronto entre cidadãos e governo apazigue.

Bonito desenho. São estes alguns dos traços que formam o desenho do choque cultural – esse importante e inevitável tempo que nos faz manter ainda mais próximos de Deus. Que me faz perguntar tantas vezes “Onde estás Tu aqui?” e redescobri-Lo, reinventá-Lo nas coisas mais simples. Pois sim, Deus também (e sobretudo) está nas coisas simples. Relembro tantas vezes vários livros, cheios de teorias teológicas mas com muito sentido prático, que li aquando do meu tempo de discernimento para a partida em missão. Um deles, de Vasco Pinto Magalhães. Onde há crise, há esperança. O título não diz tudo, mas já diz muito. É reler nestas várias crises e cruzes uma oportunidade de renascer. Tal como Jesus na cruz. Penso mesmo que a vida é isto – um sucessivo e diário morrer para que se (re)nasça com mais vida. E tantas vezes nos embrulhamos nestas teorias, mas é na dor, na crise que somos mais capazes de bater à porta de Deus e pedir permissão para entrar, pedir aquele colo para nós mesmos e para os demais. Como é lógico, Ele nunca recusa.

Dizia que Deus está sobretudo nas coisas simples. É nas idas às Irmãs de Madre Teresa aqui em Adis Abeba com os meus companheiros de comunidade, que tenho encontrado essa simplicidade de Deus. Enquanto fazia Fisioterapia a uma senhora que sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e que por isso ali se encontra há cerca de 6 meses, pude contemplá-la – a ela e à simplicidade. Foi a primeira vez que nos tocámos. E foi nesta primeira vez que senti o quanto queria ser amada. Por cada frase em amárico que eu dizia, esboçava o maior sorriso. Queria “cativar-me”, como a raposa queria ser cativada pelo Principezinho. Pedi desculpa porque o meu amárico não era o melhor, ao que me respondeu:

Amariña betam go bez! Anchi betam qonjo nesh! (O amárico está muito bem. Tu és muito bonita!)

Sorri. Retribui elogios:

Yeanchi mulu kemize betam qonjo new! (o teu vestido é muito bonito).

O amor é isto. Simples e só vive se o “usarmos”. “Se hoje ouvirdes a voz do Senhor não fecheis os vossos corações” (Sl 94), recordo nos últimos dias este salmo que tantas vezes ouvi a minha querida mãe cantar na Eucaristia das 9h da manhã. E quantas não são as vezes que o nosso coração se fecha e endurece por esta falta da “Voz do Senhor”, do amor. Quando é tão simples; basta isto: não ter medo de amar.

Um terno abraço de quem vos ama.

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