Quarentenas em tempo de quaresma

A quarentena de jejum e tentações de Cristo no deserto, descrita no NT inspira a quaresma. Uma preparou Cristo para a sua missão, a quaresma prepara para a Páscoa.
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As quarentenas devidas à epidemia do Codiv 19 suscitam novos olhares sobre a etimologia de fundo bíblico e cristão. Que é, afinal, uma quarentena. Será castigo, penitência, esperança de libertação, saúde e graça? A génese do nome quarentena vem da Bíblia. No século XIV começou também a significar isolamento de pessoas com doenças contagiosas em tempos de epidemia. A quarentena liga-se a dois sentidos antagónicos: os que aceitam e os que rejeitam.

O dilúvio de 40 dias de chuva no tempo de Noé ( Gen 7,4), tradição oral mítica integrada  no texto do Géneses, foi tempo de esperança para  os da arca e de desgraça para os  que desprezaram essa oferta de salvação.  Os 40 anos de isolamento do povo de Deus no deserto com grandes carências foram duros de suportar (Ex 24, 18). Havia duas alternativas: libertar-se da escravidão ou continuar escravos até à morte do poder dos Faraós. Foi quarentena de austeridade heroica, envolvida pela aliança com o Deus Único e aceitação dos seus Mandamentos, (o código judeo-cristão de amar e não matar o próximo). As quarentenas são tempos de deserto, austeras, solidárias. No AT há ainda os quarenta dias de ameaça proclamados por Jonas a Nínive com resposta de penitência geral que salvou o povo e a cidade; e a fuga do profeta Elias para o monte Horeb (1 Reis 19:8-10) que lhe salvou a vida e a do seu povo. As quarentenas são acompanhadas por líderes carismáticos chamados por Deus para essa missão como Noé, Moisés, Jonas e Elias.

A quarentena de jejum e tentações de Cristo no deserto, descrita no NT inspira a quaresma. Uma preparou Cristo para a sua missão, a quaresma prepara para a Páscoa. Nesta sobrepõe-se a memória da “passagem” da escravidão do Egito para a libertação liderada por Moisés; e a passagem da morte para a vida de Cristo morto e ressuscitado. Os 40 dias vão da 4ª feira de cinzas à Páscoa (5ª feira santa) sem contar os domingos. É tempo de austeridade, partilha e vida solidária. A liturgia celebra ainda os quase 40 dias do Advento e os 40 dias do Natal à Apresentação (purificação ritual). Enquanto a quaresma é de austeridade, penitência e arrependimento, como a de Nínive, os 40 dias da Páscoa à Ascensão é tempo festivo, de alegria e ação de graças pela libertação da morte pela ressurreição de Cristo e promessa de vida eterna para todos os que o aceitam.  

Será que há semelhanças entre estas e as quarentenas das epidemias? Todas se relacionam com a vida partilhada. A vida nunca é só individual(istica). Nem um dia vivemos sem ajuda da vida de outros; a nossa é sempre algo da vida alheia, partilha coletiva, e vida para os outros. Mesmo o sofrimento de uma pessoa é partilhado e aliviado por outras pessoas. E agora que se reflete e se discute abundantemente a eutanásia, ocorre relacionar as quarentenas impostas aos doentes graves e incuráveis por poderes estatais para defender a vida de todos. As quarentenas dos doentes de epidemias (doenças por vezes incuráveis) são em favor da vida partilhada e substituem a ordem de matar como se faz com os animais contagiados para evitar que contagiem e matem pessoas. Não se manda matar pessoas mas confinam-se para as tratar e salvar, quando possível, e para que a doença não alastre e mate outras pessoas. São quarentenas de esperança para uns e outros. Não há quarentena de abandono e morte; seria crueldade desumana. O doente incurável, com doença contagiosa precisa de ajuda e alivio. 

O Estado existe para o bem comum, vida melhor, não para o mal comum nem o mal individual (ìsta). A pessoa não pode vender-se e ser escravo de minoria ao dar-lhe poder sobre a sua vida relacional, para ela ser seu dono e nomear sobre ela os seus meirinhos. Não é absoluta a sua liberdade de se vender para a morte; a sua vida é partilhada com outros (bem comum). A vida pessoal nunca é só desta pessoa nem o Estado é seu dono. A liberdade e propriedade da vida pessoal não são plenas; não permitem dar ao Estado autorização para a tirar. Em psiquiatria vigora o princípio de que sofre de perturbação mental e liberdade limitada a pessoa que atenta contra a própria (depressivos) e a vida dos outros (paranoicos). Por isso a sociedade organizada (Estado) tem a tutela de a proteger e tratar, não de a matar como já faz no aborto. É um contrassenso que um individuo em sofrimento possa investir o Estado de poderes a delegar nalgum carrasco para o matar. Humano (e divino) é as pessoas darem a vida uns pelos outros, não tirá-la, segundo o lema: a minha vida é tua e a tua é minha. Aquele que queria matar todos os que seguiam Cristo reconheceu «que [Cristo] me amou e a Si mesmo Se entregou por mim» (Gl 2, 20) (Papa Francisco, Mensagem da Quaresma). Custa a aceitar que pessoas bem intencionadas queiram que um Estado, no século XXI, em vez do bem comum, promova um fake bem individual.

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Captura de ecrã 2024-04-17, às 12.19.04

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